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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Como atender um parto acidental (por Ana Cristina Duarte)

O texto a seguir foi escrito por Ana Cristina Duarte, obstetriz ativista da humanização do parto e nascimentos, e uma mulher incrível. Foi postado na sua página do facebook em 30 de agosto de 2014.

Trata de um texto de utilidade pública, com algumas dicas preciosas para assegurar a segurança e o processo de parto. Deve ser lido por todos e encaminhado principalmente para os taxistas, bombeiros, policiais, doulas, enfim, profissionais que poderão estar em contato com gestantes em trabalho de parto, e precisarem assistir ao nascimento de bebês.

O mais importante nesta situação é manter a calma, proteger a mulher (dos olhares curiosos, de ambientes gelados e claros, do estresse que pode estar acontecendo) e deixar a natureza agir o seu curso. O trabalho é passar segurança e confiança para que ela também passe a confiar no seu corpo e no processo do parto. 
Abaixo, indicações de como atender um parto acidental.

"Você é motorista de taxi, pega aquela corrida da madrugada, festa estranha de gente esquisita, a mulher gemendo, barrigão, oh meu deus, isso vai acontecer dentro do meu taxi!
Você é doula, chega na casa do casal para ver como estão as coisas, é o primeiro bebê, você acha que tem a madrugada toda pela frente, e encontra a moça no banheiro fazendo força, e já pensa: não vai dar nem pra chegar na garagem.

Você é policial, percebe aquele vuco-vuco debaixo do viaduto, comoção, que que está acontecendo? A roda se abre e a mulher está de joelhos no chão, olhar perdido, segurando a barriga proeminente e você na hora já sabe: esse vai ser meu primeiro parto.
E agora?

1) Ajuda. Para não incorrer em exercício ilegal de profissão, ou algo pior, chame o 192 ou 193 tão logo perceba que o bebê vai nascer ali e "peça" auxilío. Mesmo que você saiba o que fazer, mesmo que não sair dali seja opção da mulher, ligue e mantenha a ligação até que o "socorro" chegue ou que se chegue ao hospital. Essa ligação é gravada e será a base de qualquer defesa num eventual processo. Se a mulher ou você conhece médico ou obstetriz que possa acudir, chame imediatamente. (Colaboração Camila Perez - Pós graduanda em Direito Médico e da Saúde - OAB/SP 332276)

2) Adrenalina. A adrenalina é hormônio de fuga, e não de parto. Então acalme-se. Lembre-se que esses partos rápidos são em sua imensa maioria muito fáceis e tranquilos. Pense na incrível força da natureza que há por trás de uma gravidez e um parto de sucesso, e na potência que há em uma mulher dando à luz seu bebê. Pura potência. Pense nas suas ancestrais, pense nas parteiras que fazem o serviço sozinhas em choupanas e com apenas panos improvisados por anos a fio. Não há segredo no que está para acontecer, embora seja realmente grandioso. Vai dar tudo certo. A regra é a vida. Você não está ali para salvar ninguém, mas sim promover conforto e presenciar um dos mais sublimes eventos que a vida vai lhe proporcionar. Aproveite cada minuto com calma e tranquilidade. Assista maravilhado a vida explodindo.

3) Ocitocina. A mulher precisa da ocitocina para que o parto aconteça. Conecte-se com ela, transmita paz e calma. Olhe-a nos olhos, respire com ela e diga que está tudo bem e que você vai ajudá-la. Respire lentamente e ajude-a a se conectar, principalmente se ela estava assutada e as pessoas em volta ainda mais assustadas. Segure-a pelas mãos. Se há alguém com ela, diga que está tudo bem, para se acalmar que tudo vai dar certo e tudo está indo bem. Diga que ela é fantástica, que ela está fazendo tudo de forma esplêndida. Capriche nos elogios, porque ela realmente merece.

4) Espaço. Providencie espaço adequado. Panos no chão, um colchão, a cama forrada de toalhas, o banco do carro forrado com o que você conseguir. Se você é taxista, aliás, porque não leva um forro de plástico permanentemente no porta-malas? Compre na farmácia um pacote de lençol absorvente descartável e deixe sempre à mão. Se você estiver na rua, providencie privacidade para a mulher. Veja se alguém consegue lençol, cobertas, cortina, qualquer coisa que possa montar uma "cabana" ao redor dela e evitar o olhar de curiosos. Se estiver na calçada, veja se consegue levá-la ao estabelecimento comercial ou público mais próximo. Se está em casa no banheiro tire-a do vaso sanitário ou então forre com uma toalha esticada sob a tampa do vaso. Dessa forma se o bebê nascer, não cairá na água. Se possível, leve-a entre uma contração ou outra para a cama forrada. Se ela estiver no chuveiro, deixe-a lá. Apenas consiga toalhas para forrar o chão onde o bebê vai nascer.

5) Posição. Evite que ela fique deitada de barriga para cima. Essa é a pior posição para a oxigenação do bebê. Pode ser em quatro apoios, acocorada apoiada em alguma companhante, deitada de lado, ajoelhada e apoiada em alguém ou algo, ajoelhada na beira da cama, essas são algumas sugestões. Deixe-a mudar de posição livremente. As contrações vão empurrar o bebê e nos intervalos ela vai respirar, descansar, beber água e pode aproveitar para levantar, esticar as pernas, alongar o corpo. Não se preocupe se a mãe evacuar ou até mesmo se o bebê se sujar por causa disso. Essa "contaminação" não é prejudicial ou perigosa, de forma alguma. Essas bactérias são as que vão colonizar o aparelho digestivo do bebê para que ele digerir e absorver normalmente.

6) Conforto. Providencie coberta, almofada, apoio para a cabeça e pernas, tudo o que possa fazer ela se sentir mais confortável. Se ela estiver de calça comprida, pergunte se ela consegue tirar ou peça permissão para ajudar. Não tire a roupa à força. Não precisa tirar as outras peças de roupa, se ela estiver confortável. Se estiver em local público cubra e proteja de curiosos as partes íntimas com uma toalha, pano, camiseta, o que conseguir. Ainda que ela não solicite, ou não declare, até mesmo por falta de condições, ela sempre se lembrará desse gesto de elegância com gratidão. E o risco de um trauma pela exposição pública não é pequeno.

7) Força. Não precisa pedir para ela fazer força. Ela sabe o que fazer, o corpo fará tudo sozinho. As forças excessivas diminuem a oxigenação do bebê. Deixe o corpo dela funcionar. Os cabelinhos do bebê aparecerão pouco a pouco, e não há urgência alguma para que saia logo. Os bebês sabem sair por si próprios. Mesmo mudando de posição várias vezes, em algum momento o bebê vai sair.

8) De bumbum. Se o que você perceber saindo for um bumbum de bebê ou pezinhos, ajude a mulher a ficar em quatro apoios, mãos e joelhos no chão (ou na cama) e não faça mais nada. Não toque no bebê até que ele saia por completo. Deixe a força da gravidade ajudar. Nessa posição é importante que o bebê "caia" sobre a superfície. No máximo coloque uma toalha dobrada sob a mulher, onde o bebê vai cair (de pé ou sentado).

9) De cabeça. Após a saída da cabeça, se ainda estiver envolta pela bolsa das águas, rasgue-a com os dedos calmamente para que o bebê possa respirar. Aguarde o resto do corpo sair. Se o corpo não sair depois da contração seguinte, coloque a mulher em quatro apoios e peça para ela fazer muita força na próxima contração. Essa é a única hora em que fazer torcida organizada para as forças pode ser uma ótima ideia. Deixe o bebê sair sozinho, não puxe e não manipule. No máximo coloque suas mãos sob ele, para suavizar a aterrisagem. Se preferir, incentive o acompanhante a segurar o bebê enquanto você supervisiona. Se você não tem luvas, não conhece a mãe e não tem garantias de que ela não tem HIV ou Hepatite B, o melhor é você não tocar no bebê e nos líquidos do parto. Se precisar, use uma razoável camada de tecidos entre a sua mão e o bebê. Caso você entre em contato com alguma secreção, não entre em pânico. Os casos de contaminação são raríssimos e precisa haver exposição de mucosa ou cortes abertos.

10) Colo e cordão. Assim que o bebê nascer, pegue delicadamente e coloque sem pressa sobre o colo da mãe. Pegue uma toalha ou roupa seca e passe no bebê delicadamente, para tirar o excesso de líquidos. Nesses primeiros seguntos não se preocupe se ele respira ou chora. Apenas deixe o cordão ligado, a placenta ainda estará dentro do útero, ligada a uma extremidade do cordão, e a outra estará presa ao bebê. Não mexa no cordão. Não é o corte que faz o bebê respirar.

11) O bebê. Avalie o bebê. Se ele se mexe, faz caretas, se está ficando rosado, ainda que não esteja chorando, ele está bem. Se ele chorar, ele está excelente. Se ele estiver com aspecto de "desmaiado", estimule as suas costas com vigor (sem machucar), ao longo da coluna. Se ele continuar com esse aspecto, sem tônus muscular, será necessário uma respiração boca-a-boca, suave, com pouco volume de ar. Duas ou três insufladas de ar e ele estará respirando por conta própria. A chance de você precisar ajudar o bebê a respirar é de uma em cem. A técnica consiste em cobrir a boca e o nariz do bebê com a sua boca, e insuflar o volume de ar que cabe na sua boca (e não o volume dos seus pulmões). Insuflar uma vez e aguardar dois segundos antes de insuflar novamente. Se o bebê esboçar movimentos ou tossir, já estará provavelmente começando a respirar sozinho. Observe os movimentos do peito.

12) Vínculo. Tão logo o bebê esteja no colo da mãe, e seco, proteja-os com uma coberta, um casaco, ou qualquer coisa que possa cobrir pelo menos o bebê. O contato pele a pele ajuda a manter o recém-nascido em boa temperatura corporal. Deixe a mãe deitada ou semi sentada com ele sobre ela.
Aos poucos o bebê vai começar a mover a boca e a procurar o peito para mamar. Ajude a posicionar a mãe melhor, se necessário, para que ela consiga manipular o bebê. Se conseguir almofada ou panos enrolados para apoiar seu braço, melhor ainda! Quanto antes a amamentação se iniciar, antes a placenta vai sair. Estimule o acompanhante, se presente, a participar desse momento de vitória e superação.

13) Placenta. Após parto as contrações continuam mais leves e menos dolorosas, mas promovem o descolamento da placenta. Conforme o útero contrai e a placenta descola, ela será empurrada pra fora, como aconteceu com o bebê. É normal a saída de quantidade moderada de sangue nesse processo, algo por volta de dois copos de sangue. Se começar a perceber jatos de sangue, uma hemorragia pode estar ocorrendo. Se a mãe tiver sintomas, fraqueza, tontura, lábios brancos, coloque-a na horizontal com pernas elevadas e faça massagem vigorosa na barriga, onde está o útero, até que este contraia. Faça massagem com vigor, como quem sova um pão. É importante sentir o útero endurecer sob a barriga. A essas alturas é bem provável que a ajuda já tenha chegado e possa cuidar da continuidade dessa hemorragia. Enquanto não chegarem, continue a massagem vigorosa.

14) Fim. Não corte o cordão em nenhum momento. Mantenha a placenta junto do bebê em um saco plástico, ou qualquer tipo de embalagem. Mantenha mãe e bebê aquecidos. Aguarde até que a equipe de assistência chegue antes de colocar a mãe em pé, pois ela pode sentir-se fraca e até desmaiar. Se precisar transportar a mãe por alguma razão, faça com ela deitada ou sentada em uma cadeira com rodas. Evite que ela faça grandes caminhadas, por causa do sangramento. Após repouso e avaliação, será decidido pela transferência ao hospital ou permanência em casa com visitas da equipe.

Parabéns, você fez um ótimo trabalho!
Comece a pensar em se profissionalizar!"

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